FIQUE FRIO!

Sobrevivência na neve
Marcos Pontes
27/01/2006

Acertei bem no coração! Marquei sete pontos. Se fosse na cabeça, seriam nove ou dez. Soube disso apenas depois do tiro, quando me aproximei “da vítima” para conferir o resultado. Treinando para usar a pistola do kit de emergência do Soyuz, não entendi porque o alvo era no formato do torso de uma pessoa. Até onde eu sei, após o pouso da espaçonave não existirá a necessidade de nos defender de qualquer agressor humano. Eu espero! Portanto, talvez fosse mais coerente usar o perfil de um urso, uma raposa, um coelho, ou mesmo de um veado. Quem sabe! De qualquer maneira, o pessoal daqui tem grande experiência no treinamento para as possíveis eventualidades do pós-vôo. Além disso, o frio era muito intenso para perder tempo com perguntas desse tipo. Afinal de contas, não me senti tão mal assim. Foi simplesmente uma questão de sobrevivência – era o alvo ou meus dedos congelados! Matei o alvo e rapidamente coloquei as luvas!
O ato de aquecer das mãos, depois de vários minutos expostas diretamente ao frio, trouxe consigo uma dor considerável. Para disfarçar, fiz “cara de paisagem” durante as palavras do instrutor sobre a próxima atividade do grupo. Pensei que estava só naquela situação dolorida. Porém, mais tarde, descobri que estavámos todos com a mesma sensação. A “paisagem” geral estava, portanto, realmente contagiante.
A arma utilizada na prática era do mesmo tipo contido no equipamento de emergência do Soyuz. Na espaçonave possuímos três conjuntos de sobrevivência. Eles incluem água, ração, remédios, kit de pesca, bússola, rádio, faca e outras tantas coisas úteis, como a própria pistola, com a qual atingi, de maneira fatal, aquele coração de papel. Além de todo esse material, também temos roupas especiais para sobreviver na água e no frio.
Um dos instrutores salientou a indicação do termômetro: 30 graus negativos! Uma das mais baixas nos últimos anos em Moscou. Lembrei do tempo que morei em Natal, no Rio Grande do Norte. Foi em 1985. Naquele ano a “friagem” do inverno foi recorde: 18 graus. Deu saudade da praia!
“Alguma pergunta?”, disse o instrutor, interrompendo meus pensamentos tropicais. Olhei ao redor. Um cenário branco, coberto por uma espessa camada de neve. Acima, um lindo céu azul. Nenhuma nuvem. Apenas algumas trilhas de condensação deixadas por aviões. Um “sol de geladeira” brilhava intensamente. Sua luz refletia forte por todos os lados, especialmente pelas pontas de gelo transparente, como estalactites de uma caverna, aqui formadas pela água que congelou ao escorrer das bordas do telhado do abrigo.
Terminada a instrução de tiro, seguimos de volta ao acampamento. Durante a curta caminhada de 20 minutos, tentei tirar algumas fotos. Porém, a máquina se recusou a funcionar. Inicialmente a atualização das imagens na tela de cristal líquido ficou extremamente lenta. Em seguida, o monitor indicou que a bateria, nunca usada, estava “vazia”! Desisti das fotos. É impressionante como o nosso corpo é adaptável e resistente.

O vento aumentou, cobri o rosto para evitar congelar, literalmente, os lábios e o nariz. No meu caso, dado ao tamanho avantajado, congelar o nariz seria um processo mais demorado. Mas, de qualquer forma, não seria bom abusar!
O organismo reagiu rapidamente. Tentando evitar o congelamento, os olhos lacrimejavam e o nariz escorria, como se estivesse com uma gripe forte. O rosto e as mãos ficaram vermelhos. As orelhas, essas eu não sentia mais. Nem os dedos do pé. Quanto ao restante, simplesmente não dava para ficar parado. O movimento ajudava a manter o corpo aquecido. Cortei tantos pinheiros que daria para construir uma casa! Os músculos do meu ombro e braço direito ainda lembram bem desse fato.
No acampamento, entre muitas técnicas de sobrevivência, construímos diversos abrigos utilizando a madeira dos pinheiros e os paraquedas da espaçonave. Aprendemos como utilizar cada item dos conjuntos de emergência. Tudo muito útil mas, naquela temperatura, qualquer coisa que pudesse ajudar a iniciar e manter fogueiras queimando, era especialmente interessante. Acendemos várias. De tempos em tempos, era necessário colocarmos os pés próximos do fogo para descongelar os dedos. Afinal, ninguém quer um “pé-frio” no time!
Por falar em time, um dos resultados importantes desse tipo de treinamento, é conhecer bem as pessoas do seu grupo. Nada como uma sobrevivência, uma situação difícil que atinja a todos de uma só vez, para podermos realmente saber como reagimos às necessidades comunitárias. Alguns se alienam e ficam inativos. Tornam-se, por vezes, apenas críticos do trabalho alheio. Outros se irritam e, com os nervos à flor da pele, tentam fazer tudo sozinhos. Não pedem ajuda, não oferecem ajuda. Essas e muitas outras reações são facilmente observadas. Contudo, idealmente treinados, procuramos desenvolver um forte sentimento de cooperação. Não existe maneira de sobreviver isolado nessas condições. Até o calor do corpo de outra pessoa é importante. O planejamento conjunto. As mãos que seguram juntas aquela madeira mais pesada. O sorriso na hora certa para aliviar a tensão.
Na verdade, um treinamento de sobrevivência é um tipo de laboratório. Uma pequena amostra controlada do comportamento humano em face das dificuldades. Seria muito bom se todos tivessem essas oportunidades. Talvez assim, aprenderíamos a conviver melhor e a construir juntos todos os tipos de “abrigos e fogueiras” para nos proteger das “frias” da nossa vida.

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